Sempre que observava um grupo de rapazes no espelho de água de Belém, junto à doca e ao Padrão dos Descobrimento, a divertirem-se com os seus veleiros toscos mas belos, de madeira, sem outra qualquer possibilidade de pilotagem que não a navegação de largo, com o vento – caso existisse – a dar em cheio nas velas de pano colorido, não deixava nunca de pensar nos outros barcos, os verdadeiros, eternamente aprisionados nas armadilhas armadas pelos lagos. E mesmo que estes fossem grandes, enormes, e possuíssem nomes deliciosamente sonorosíssimos, como Titicaca.

Alcandorado a 3 821 m de altitude (sem ser contudo, a massa de água doce localizada a mais alta altitude no planeta) na paisagem andina, com cerca de 8 300 quilómetros quadrados, uma profundidade média de cerca 160 m, e máxima de 280 m, alimentado pela chuva e o degelo, o lago Titicaca alberga a maior parte da marinha boliviana, ficando o restante para o patrulhamento de rios.

Cerca de 5000 homens, destinados a cerca de 175 embarcações, de diversos tipos e dimensões, mas o suficiente para ser provavelmente a maior força naval ribeirinha do mundo. A marinha boliviana, ficou confinada ali, como resultado último da chamada Guerra do Pacífico (1879 – 1883) que durante aquele período, opôs a Bolívia e o Peru ao Chile.

Como quase todos os conflitos na América do Sul espanhola, as suas raízes encontravam-se nos problemas mal resolvidos durante o período colonial, e que foram posteriormente herdados pelas repúblicas independentes.
O mesmo já não aconteceu com a parte portuguesa, o Brasil, o qual, ocupa numa única unidade quase metade (mais precisamente 48%) do continente, enquanto a outra metade é ocupada por doze países.

A América Hispânica, com uma estrutura administrativa assaz complexa, repartida entre vice reinados, intendências, audiências, sedes de governo, etc, propiciou que a independência desta territorialidade a partir de meados do século XIX, arrancada à força de Madrid, bem diferente do caso brasileiro, e agregada em repúblicas, novamente diferente do império brasileiro, degenerasse em conflitos, cuja resolução se arrasta até à atualidade.

No caso da presente contenda, aquando do seu início, nem sequer se sabia se a parte do território em disputa era oriunda do antigo Vice-Reinado do Peru, ou do Vice-Reinado do Rio da Prata.

Tratava-se da região de Atacama, sem grande serventia como são habitualmente os desertos, até à altura em que se descobriu que era rico em guano e salitre, nitratos importantes como fertilizante para a agricultura, e o último, indispensável para o fabrico de explosivos.
A guerra teve duas fases distintas. Uma primeira que se estendeu de 1879 a 1881, que sendo travada no deserto, foi essencialmente naval. E o seu complemento, até 1883, no rendilhado pétreo dos Andes.

Dada as particularidades do litoral chileno, para o sucesso dos combates em terra, espremida esta, entre o oceano e a cordilheira andina, era essencial controlar e dominar a costa, único sítio de onde podiam chegar víveres, cavalos, água, e sobretudo armamento, para o exército peruano e boliviano, naquela altura a combater longe das suas terras.
As três marinhas, relativamente bem apetrechadas, com destaque para a chilena, fortemente assessorada, e até equipada, pelos ingleses, chefiada pelo Contra Almirante Juan Williams Rebolledo, filho do marinheiro Juan Williams, que tinha servido sob as ordens do lendário Thomas Cochrane, protagonizaram uma série de batalhas navais, com desfechos vários, mas que gradualmente foram dando supremacia ao Chile, que vencida esta primeira fase da guerra, pode então preparar a segunda e definitiva, e que apenas podia terminar com a capitulação de uma das partes.

O cenário de guerra mudou radicalmente, e o exército chileno, uma vez mais melhor preparado que o dos seus dois adversários, empreendeu a subida dos Andes e rumou ao norte, apenas parando com a entrada em Lima, capital do Peru, ainda em 1881.

Dois anos depois, e após batalhas cruentas, na selva, nas serras, em pântanos, e ainda mais uma vez no mar, a guerra terminava.
A guerra marítima foi seguida atentamente pelas potências navais da altura, como os almirantados britânicos, norte-americanos e franceses, tanto no que respeita a batalhas como a embarcações, ou a outros episódios, como o célebre protótipo de um submarino peruano.
Em Ancon, em 1883, o Chile e o Peru, fizeram as pazes, à custa do segundo que perdeu para o primeiro, Arica e Tacma.

Mas o Chile também perdia, porque tinha empenhado naquele conflito a sua potência militar e a sua estratégia política e diplomática, que precisamente naquela altura estavam particularmente envolvidas na reivindicação junto à Argentina de uma parte da Patagónia, e esta sim, se bem-sucedida, teria constituído uma reconfiguração territorial relevante.
Quanto à Bolívia, em 1884 celebrou a paz com o Chile, cedendo Antofagasta, e portanto, todo o acesso ao mar, retirando a sua marinha para o lago Titicaca, onde ainda hoje se encontra.

E agora quando no mesmo local, vejo os mesmos rapazes, com os vestígios da idade, a lançarem à água modelos sofisticadíssimos de veleiros, com controlos remotos que permitem todas as manobras possíveis na vela, que reproduzem tudo o que se passa com os barcos verdadeiros, até o enjoo, continuo a pensar nos meus queridos barcos -mesmo que também outros agora — que continuam prisioneiros do Titicaca.

O Chile, que talvez não saiba o que fazer com tanto litoral, e a Bolívia, sem litoral algum, duas nações soberanas, idóneas e responsáveis, têm vindo a manter relações com vista a resolver o problema.
E entretanto, vamos poder continuar a ler Luis Sepúlveda, no seu maravilhoso Patagónia Express.
O mar torna-se presente na brisa, que às vezes consegue dissipar o bafo húmido e quente que vem do interior.
