Como o Mundo é pequeno e o Brasil grande!
Vitorino Nemésio, O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos
Quando no final do ano de 1825, em Lisboa, Portugal finalmente reconheceu a independência do Brasil, depois deste a ter declarado unilateralmente nas margens do Ipiranga em 1822, deixava ao novo país, uma área imensa, e a sua configuração harmoniosa no seio do continente sul-americano, quase completa.
Quem acabou por estabilizar a área e o desenho da terra, daquilo que é hoje o Brasil, foi o Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), o Barão do Rio Branco, que entre 1902 e 1912, ocupou o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, cargo mais comummente conhecido por chanceler.

Filho do Visconde do Rio Branco, um dos mais notáveis chefes de governo do segundo império brasileiro, antigo professor de matemática na Escola Naval, e também chanceler, cresceu e viveu no ambiente das relações exteriores.
Meu pai, quando ministro, trabalhava em casa, no seu gabinete…Vi assim funcionar em casa a Secretaria dos Negócios Estrangeiros.
O filho, o Barão, optou pelo contrário, e foi viver para o Ministério. No Itamaraty, mandou fazer a cama no seu gabinete de trabalho, e passou a viver ali. E seria ali que iria morrer.
Nos períodos de maior atividade, era à secretária, depois de arredados mapas e tratados, que fazia as refeições pantagruélicas com que alimentava um físico imponente, de quase dois metros e muito mais de cem quilos. Os seus mais fiéis guardaram rascunhos de memorandos, com vestígios de azeite dendê e vinho precioso.
Parte significativa das extraordinárias vitórias diplomáticas do Brasil, em disputas de fronteiras, foram devidas aos magníficos mapas do território e arredores, elaborados pelos portugueses e deixados ao novo país.
Felizmente chegaram até nós fotografias do caos instalado no gabinete do Barão, onde numa desordem meticulosa, jazem, sob, e sobre, pilhas de livros, abertos e fechados, mapas e folhas avulsas, autênticas preciosidades, sobre tudo aquilo que respeitava ao Brasil, adquiridos do seu bolso particular, nos melhores alfarrabistas do mundo inteiro, e em bibliotecas desmembradas e colocadas à venda.

Os seus colaboradores mais chegados chamavam aquele tumulto bibliófilo, território onde apenas o Barão se conseguia orientar, os “Arquivos do Mar Morto”.
Parte muito significativa das suas – e do Brasil – extraordinárias vitórias diplomáticas, em processos arbitrais por disputas de fronteiras, foram devidas aos magníficos mapas do território e arredores, elaborados pelos portugueses e deixados ao novo país, e com os quais o Barão evidenciava direitos sobre os vizinhos do Brasil, os quais provavelmente não tinham aqueles direitos, mas seguramente também não tinham aqueles mapas.
E dali, daquele gabinete caótico no meio da vegetação luxuriante do Rio de Janeiro, enviava instruções minuciosas aos seus colaboradores colocados no estrangeiro, sobre a forma de consultar os documentos que não tinha conseguido adquirir. Em que biblioteca, sala, estante, e se fosse preciso, escondido atrás de que livro.

Na questão do Amapá, não deixa de agradecer ao Conde de Arnoso o acesso à biblioteca do Rei D. Carlos, onde sabia existirem documentos únicos indispensáveis à evidência da razoabilidade brasileira.
Foi sempre muito chegado à tertúlia diplomática luso-brasileira que gravitava em torno do nosso cônsul em Paris, José Maria Eça de Queiroz, apesar de curiosamente nenhum dos dois José Maria, ter escrito muito sobre o outro. Os colaboradores de ambos, que não se chamavam assim, mas amigos fraternos, sim, e iam enriquecer uma das epistolografias mais deliciosas de ler.
Eça e o Barão, foram contemporâneos nos mais prestigiados postos diplomáticos da Europa, e os tais amigos fraternos, que acompanhavam os José Maria, dois homens profundamente diferentes, interna e externamente, eram gente da estirpe de um Joaquim Nabuco, Oliveira Martins, Eduardo Prado, Ramalho Ortigão, Oliveira Lima.
E Domício da Gama. Apesar da significativa diferença de idades, era dos íntimos mais queridos do Barão, que o ia nomear para substituir Nabuco na embaixada de Washington, e que seria posteriormente seu herdeiro à frente do Itamaraty. E também de Eça, de quem era presença assídua na casa encantada de Neuilly, e a quem o nosso bom José Maria chamava um mulato cor-de-rosa.
Os dois, Eça de Queiroz e Domício da Gama, deixaram-nos uma das mais extraordinárias fotografias da nossa iconografia, aquela, tirada precisamente no jardim do nosso consulado em Paris, e onde Domício, aparece sentado tranquilamente a ler um alfarrábio, sob a orientação do grande mandarim, um Eça de Queiroz metido dentro da cabaia chinesa que lhe trouxe Bernardo Pindela, o Conde de Arnoso, de Pequim, e que hoje pode ser vista, belíssima, na sua Fundação em Tormes.

José Maria Paranhos, Juca Paranhos, para os amigos, com o seu trabalho, plantou para o Brasil um horizonte de quase um milhão de quilómetros quadrados.
José Maria Paranhos, Juca Paranhos para os amigos, ingressou na carreira diplomática em 1876, como cônsul em Liverpool. Profundamente monárquico e fiel à figura do Imperador D. Pedro II, seria, contudo, sobre a bandeira da República que ia obter os seus grandes triunfos diplomáticos.
Em 1895 vence a Argentina na questão de Palmas, onde sob arbitragem do presidente norte-americano Grover Cleveland, aumenta e regulariza à custa da Argentina, as raias de Santa Catarina e do Paraná.
Entre 1898 e 1900, vence o conflito fronteiriço do Amapá brasileiro com a Guiana francesa, defendida pelo Quai d’Orsay, à altura a mais competente diplomacia do mundo, e arbitrado pela Confederação Suíça.
E em 1903, inicia o talvez maior sucesso da sua brilhante carreira, quando começa por negociar com a Bolívia a questão do Acre, que o governo daquele país pretendia vender ao Bolivian Syndicate, um conglomerado capitalista internacional fundado em Londres em 1901, e que tinha à testa um primo do presidente norte-americano Theodore Roosevelt, e completado em 1909, no encerramento das negociações com o Peru.

Na questão do Acre, porque houve territórios bolivianos ocupados por brasileiros, permutados por territórios brasileiros ocupados por bolivianos, e porque envolveu uma compensação material, em caminhos de ferro e em esterlinos, houve críticas aos resultados alcançados.
Mas ao todo, com o seu trabalho, o Barão tinha plantado para o Brasil um horizonte de quase um milhão de quilómetros quadrados.
Morreu em dez de fevereiro de 1912, no sábado anterior ao carnaval daquele ano, e em sua honra foi feito o impensável, e nunca mais repetido. O carnaval foi adiado para abril!.
Muitos anos mais tarde, no Rio de Janeiro, pude finalmente satisfazer uma das minhas grandes ambições que era visitar o Itamaraty, hoje albergando o Museu Histõrico e Diplomático.

É claro que eu queria ver tudo, mas sobretudo o gabinete do Barão e o salão de refeições para convidados, que abre para uma varanda belíssima, que se debruça sobre o célebre lago retangular, ladeado pelo renque de palmeiras imperiais, e que qualquer pessoa no mundo reconhece, pelas fotografias e reportagens cinematográficas da altura, com a noite esplendorosa dos trópicos a refletir-se na água do lago, e grupos de senhoras com vestidos compridos, e senhores com smokings, ou com fraques e fardas consteladas de condecorações, onde o Brasil, mostrava ao mundo a mais refinada arte de bem ser anfitrião.

A meio de uma tarde soalheira, fiquei deslumbrado porque era exatamente como tinha visto nas revistas Cruzeiro, Manchete, Flama, Paris- Match, e nos documentários, que nos cinemas antecediam a exibição dos filmes.
Mas era tempo de ir para a almejada penumbra do gabinete do Barão do Rio Branco.
Também foi excelente. É claro que já não vi o Mar Morto, muito provavelmente transportado para Brasília, e mais provavelmente ainda, para uma biblioteca particular.

Quando nem sequer tinha reparado nela, o meu cicerone, chamou-me a atenção para um retângulo amplo, de couro verde escuro, julgo, simultaneamente macio e sólido. Era a pasta dos despachos do Barão do Rio Branco. E tinha sido oferecida por um Brasil grato pela incorporação do Acre ao património nacional. E por isso mesmo tinha no seu canto inferior direito, incrustado, todo um Acre, perfeito no seu rendilhado, miniatura exata dos contornos do território, nas mesmas proporções feitas de terra, mas agora de prata. E que me caiu aos pés, mal segurei na pasta. O tempo tinha comido a resistência dos micro pregos que seguravam o Acre de prata.
Colocámos tudo no mesmo lugar, para que o próximo incauto arcasse com as culpas, provavelmente as mesmas que as do meu antecessor no manuseio da pasta, e chegámos a sorrir.
Afinal, o outro Acre, continua firme nesse oceano de terra que é a Amazónia.
2 Comentários
Muito interessante. Aprendemos um pouco mais sobre figuras importantes da nossa história. Obrigada!
Apenas agora tive oportunidade de ler o seu comentário muito estimulante, e que agradeço bastante.
Afinal, escrevemos sempre para alcançar recompensas deste género.
Grato, e cordialmente,
Artur Manuel Pires