O comandante é a segunda pessoa, logo abaixo de Deus, a bordo do seu navio.
Por imperícia, ou apenas por falta de sorte, não consegui encontrar na literatura consultada qualquer registo fiável que permita certificar este estatuto, sem a colaboração do luxuriante imaginário náutico.
Mas não é por isto que aquela representação deixa de ser menos real, acabando por coroar uma série de atributos conferidos à figura do comandante.

De entre estes, destaco o da sua imprescindibilidade. Nem mais; e colocadas as coisas nestes termos, continuamos a rondar a esfera do divino.
A imprescindibilidade do comandante a bordo, assentava no facto de que em muitas ocasiões ele era a única pessoa ali, capaz de fazer regressar o navio e a tripulação a terra. Leia-se a casa.
Era o único que sabia pressentir nos sinais do horizonte, no aspeto do mar, e na configuração da abóbada celeste, os cuidados a tomar; que sabia escolher os melhores panos, e sobretudo que sabia ler as cartas náuticas, e discernir nelas a única rota que conduzia à salvação.
Com isto, o comandante só ia pela borda fora, quando para além de déspota era incompetente.
Leitor assíduo de relatos marítimos, de Ulisses a Corto Maltese, sempre me intriguei com a capacidade das tripulações em aguentarem o trato desumano por parte dos seus comandantes, e pese embora a sombra sinistra da forca estivesse sempre presente nos conveses, a lembrar aos candidatos a amotinados o código de disciplina rigorosíssimo.

Julgo que a possibilidade de regresso final ao porto de partida, viabilizava a tirania. Era preferível regressar com as costas riscadas pela ponta do chicote, do que perecer no mar, ignaro do rumo certo.
O terror vivido a bordo ficou imortalizado em diversos formatos. Na literatura, por exemplo, na viagem trágica do Ghost, sob o comando de Wolf Larsen, no relato magistral que Jack London escreveu em 1904, no Lobo do Mar.

E no cinema, na Revolta na Bounty, claro, realizado em 1962 por Lewis Milestone, com Marlon Brando no papel do Tenente Christian e Trevor Howard no de Capitão Bligh, ou ainda melhor, na versão a preto e branco de 1935, de Frank Lloyd, e onde aqueles papeis são desempenhados respetivamente por Clark Gable, e (o insuperável) Charles Laughton.
Aquela imprescindibilidade não volta a colocar-se, salvo algumas excepções, nas restantes profissões, empresas e empreendimentos, onde a ausência dos líderes e das suas equipas, por vezes nem se faz notar, ficando aquelas, quando tal acontece, a funcionar imperturbavelmente. E não raras vezes, melhor.
Actualmente, as novas tecnologias de navegação, de telecomunicações, e de gestão das tripulações, altamente preparadas, diluíram significativamente, não a importância, mas a imprescindibilidade do comandante.
Aliás, já não pertence ao domínio da ficção científica a existência de embarcações (a navegar!) que prescindem não apenas do comandante, mas pura e simplesmente de toda a tripulação. Deus inclusive, e a crer no estado de tantas coisas no mundo.

Mas noutro tempo, tive a sorte de conhecer no porto de Viana do Castelo, no cenário lindíssimo que bordeja a marginal que conduz à área portuária, onde se encontra a maravilhosa fauna marítima típica de todos os portos, e as agências de navegação, que encerram o escritório à hora a que os seus colegas da sucursal da agência, no outro lado do mundo, estão a abri-lo, conheci aí, um legítimo comandante, à procura de navio, e que distribuía para este fim, com generosidade, por entre as mesas dos bares e as rodadas de bebida, um cartão, onde por debaixo do seu nome, sem o menor sinal de blasfémia, se podia ler:
O imediato de Deus